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Rita Monteira, uma índia.
O ano era 1848. Não que os indígenas ligassem para essa marca do tempo. Para eles os últimos dias tinham sido todos meio iguais e isso não era bom. A violência naqueles matos tinha aumentado exponencialmente nos últimos anos, assim como o número de não indígenas que chamavam a si mesmos de senhores e senhoras. Perto do rio, no meio da mata fechada, havia algumas cabanas onde viviam algumas famílias indígenas. Eles já estavam habituados a se mudarem antes do previsto para fugir dos incômodos e da violência causados pelos sertanistas. Mas também já estavam se acostumando a fazer algumas concessões e trocas comerciais. Nos últimos tempos não havia mais para onde fugir.
Numa tarde, alguns membros do grupo ainda caçavam, as mulheres que ficaram na aldeia se dividiam entre cuidar de seus roçados e fazer farinha para o almoço. Uma delas tinha parido sua filha há apenas umas semanas. Perto dela brincavam algumas crianças com um cachorro. Dentro da cabana estavam alguns homens mais velhos deitados na rede. Estaria tudo normal, não fosse por alguns barulhos no mato que iam ficando cada vez mais perto. As mulheres já estavam em alerta, espiando ao redor. Mais uma vez a tranquilidade se esvaía com o vento.
Um pequeno grupo de homens aparece. Eles vestiam camisas de manga longa meio larga e meio sujas também, chapéu, botas que iam até os joelhos e uma calça escura, alguns tinham um lenço amarrado ao pescoço e todos portavam armas. Pendido dos cintos tinha umas bolsinhas de couro, onde carregavam munição e água. Eles chegaram vestido de coragem, embora em seus olhos o ódio se misturasse ao medo. Não titubearam, pois essa atividade já era um tanto corriqueira. Os velhos saíram da cabana assustados com os gritos das mulheres. Os homens atiraram e já não havia mais o que pudesse ser feito a não ser se defender. Uma das mulheres alcançou um arco e suas flechas, chegou a atirar algumas e, por ser muito certeira, mesmo na correria, conseguiu atingir um dos homens. As crianças mais velhas logo correram para o mato. Um dos velhos tinha sido atingido e fenecia no chão. As mulheres que estavam no roçado correram para junto das crianças no mato. Os homens perseguiram atirando, sequestraram três crianças e uma mulher com seu bebê.
A mulher, que levava a bebê amarrada por um pano a seu corpo, tinha tido os pulsos atados por uma corda, as crianças mais velhas iam acompanhando seus passos, vigiadas pelos homens. Ela, já ciente de seus prováveis destinos, não chorava. Mantinha-se firme, embora triste. Sabia que do outro lado da serra, os homens que tinham ido caçar também lutavam para defender o território que ocupavam. Ela não tinha esperança de voltar a vê-los. Preocupava-se agora com as crianças, que sabia que aprenderiam outra língua e seriam alvos dos homens de túnicas, que ficavam nas capelas.
Depois de caminharem por uma semana chegaram a uma fazenda. Ali os homens foram bem recebidos, deixaram a mulher e as crianças em uma varanda. Um outro homem, velho e impaciente, veio vigiá-los. Os homens que tinham capturados a mulher e as crianças, entraram na casa. Enquanto estavam lá, veio uma escravizada e deu de comer à mulher e as crianças. A mulher, que ainda mantinha sua bebê atada ao corpo, estava nervosa, protestava a todo o tempo e gritava com o velho. Tinha sido assim durante boa parte da viagem. Mas também estava muito faminta para não comer e calou-se. Dentro da casa os homens comiam junto ao dono da propriedade, um senhor barrigudo, muito alegre e que se dizia experiente no trato com os “índios”. Ele já tivera alguns em sua propriedade, trabalhando. “Depois que amansam, são muito bons de tratar”, dizia. Quem conversava com ele era o líder do grupo, Herculano, que barganhava os indígenas que havia deixado na varanda do quintal. O homem topou ficar com a mulher, mas sem o bebê. Não queria mais uma criança berrando em seus ouvidos, além do mais, seu filho de um ano precisava de uma ama de leite para crescer saudável.
Herculano desceu as escadas, olhou nos olhos da mulher que já esperava o pior, mas ainda tinha esperança de fugir. Chegou a ficar com pena daquela mãe, mas sabia que seria melhor para aquele bebê bonitinho ser criado em casa de família do que entre selvagens. A mulher esperneava, chegou a machucar seus joelhos arrastando-os no chão, curvando seu corpo sobre sua filha para que não a pegassem. A bebê chorava, chorava alto, soluçando, como quem sabia que não sentiria mais o cheiro da mãe. Herculano deu ordem para que dois de seus companheiros agarrassem a mulher pelo braço, que ainda estava amarrado nos punhos. O nó do pano foi desfeito e a criança foi puxada. O senhor assistia tudo da varanda contígua à casa, impaciente com aquela cena. Do outro lado do terreiro, próximo à varanda onde a indígena ainda gritava e as crianças mais velhas choravam assustadas, outros companheiros de Herculano selavam os cavalos e preparavam a carroça para o restante da viagem.
De fazenda em fazenda tentavam barganhar as crianças. O discurso era sempre o mesmo: a guerra era justa, as crianças ficariam melhores assim, seriam catequizadas, viveriam como gente. Por fim, a bebê foi deixado com um casal de uma família conhecida de Herculano, os Gonsalves Monteiro. Um dos membros dessa família era Manuel; ele e sua mulher, Anna, já tinham três filhos, sendo a última uma menina que também tinha sido adotada. Assim que mandou o recado de que estava com uma bebê, Anna e Manuel aceitaram ficar com ela. O casal e Herculano acertaram a data do batismo. Na casa de seu sogro, Herculano pediu a uma mulher que arrumasse uma roupa para a criança. No dia seguinte Herculano colocou a bebê, que estava enrolada em um tecido grosso, no fundo da carroça e rumou para a Igreja de Santa Rita, no povoado de Santa Rita do Turvo. Na porta, encontrou com Manuel, Anna Lopes e seu filho mais velho, Gervázio.
O padre foi chamado e deu graças a Deus por batizar mais uma indiazinha. Pôs os santos óleos, rezou. A menina estava dada por batizada e recebeu o nome de Rita. Aquele momento ficaria registrado no papel de forma equivocada: a mando do próprio padre a menina foi registrada como filha de Herculano. Sem mãe. Sem o registro daquele cheiro de aconchego que ela sentira durante seus primeiros meses e lutaria a vida toda para se lembrar. No fundo o padre sabia que aquele homem franzino que levara a criança poderia ter ido àquela aldeia outras vezes e se relacionado com a mãe da criança. “Não seria nada demais coloca-lo como pai, afinal, ele cuidou dela durante a viagem e a salvou da mácula da incivilidade”, pensaria o padre.
A menina Rita cresceria em uma fazenda grande com muitos quartos, uma cozinha com fogão à lenha que funcionava o dia todo. Também pudera, ela tinha mais seis irmãos e além deles e seus pais, comiam na fazenda todos os trabalhadores, entre livres e escravizados. A propriedade tinha grandes pastos para as vacas de leite, plantações de cana, café e milho que eram transportados em carros de boi. As terras de seus pais se perdiam de vista. No início, Rita sentia uma inquietude que não é própria das crianças, se sentia alheia à tudo aquilo. Era sempre cobrada a se comportar, a não gargalhar, não correr muito longe. Vez por outra, em alguns finais de semana recebiam a visita do padre, que chegava à cavalo como muitos outros mas era recebido de forma diferente. Ele olhava para Rita com um misto de austeridade e orgulho, deixando-a encabulada.
Aos 17 anos Rita perdeu seu pai, Manuel. Ficou sentida por perder aquela figura considerada por todos o esteio de sua família. Amor não era exatamente o que ela sentia, mas respeitava e admirava muito aquele homem que havia sido um tanto distante em sua infância e juventude. Sentiria mais pesar quando, anos depois, perdera seu irmão, Gervázio, companheiro de algumas brincadeiras na infância. A morte de seu pai apressou a vontade de sua mãe em arrumar um marido para suas filhas. Francisca, que já contava seus vinte anos, teve um bom casamento para os padrões da época. A próxima da fila seria Rita, que acabou por se casar com um tal de Martinho, de família conhecida. Juntos, eles teriam cinco filhos nascidos vivos.
Quando sua mãe faleceu, ela herdou a fazenda. Gostava de ficar sentada ao pé do fogão, observando a lenha queimar. Na velhice, Rita seria popularmente conhecida pelo sobrenome de seu pai, sendo chamada por todos de Rita Monteira. Em sua propriedade convivia com muita gente, trabalhadores livres, escravizados e crianças. Dessas, ela gostava mais; enquanto seus pais trabalhavam ela cuidava dos meninos e meninas que ficavam por ali, alguns chegaram a viver com ela. Ela cavalgava muito bem, gostava de passear sozinha, sentir o vento no rosto e o cheiro do mato. Era uma senhora conhecida, caridosa, mas havia se tornado tão austera quanto o padre que lhe fitava na infância, pois havia carregado a vida toda uma mácula diante da sociedade que não entendia muito bem, já que seus pais nunca tinham tocado no assunto de forma clara, mas que todos sussurravam pelos cantos: ela era uma índia pega no laço.

